segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Mulher de um Homem Só

[Eu sei que este texto é lateral ao tema. off-topic até. Mas tem tanta gente aqui que eu sei que vai gostar do livro (e outras tantas gentes aqui que eu sei que já gostou). Então achei que era melhor publicar aqui e não em algum outro lá. Se é engano, por favor apaga sem nem perguntar...]

Há muito tempo eu só lia poesia. Tinha desistido da prosa pelo mesmo motivo que havia quase desistido da televisão, do cinema. Pelo mesmo motivo que levou Borges a só escrever contos. O excesso de imagens descontroladas, o excesso de palavras fora do lugar, a dificuldade de se levar tantas linhas paralelas a se encontrarem em um ponto qualquer e chamar este ponto de fim. Poucos autores conseguem controlar um romance o tempo todo. Talvez nenhum esteja vivo. E este descontrole, este excesso, eventualmente causa alguma dor, senão no corpo, na alma. A minha estava cansada.

Blogueiro brasileiro sempre teve cara de bandido

Mas então o Alex. Que eu conhecia do blog (onde tinha chegado via Camila (onde tinha chegado via Idelber)). Então o Alex resolveu inventar um jeito novo de publicar seu romance que todas as editoras tinham recusado. Pelo blog, eu sabia que o Alex escrevia bem e tinha coisas interessantes a dizer. E me agradou a ideia de ajudar um autor só a vencer, ou ao menos pular, a barreira de entrada do pobre e inútil mercado editorial brasileiro. Formas alternativas de lidar com “propriedade intelectual” (se a expressão não for ela mesma uma contradição) são mais que bem-vindas – quando as editoras tradicionais acabarem (e isto deve acontecer em pouco tempo agora) seria bom ter a nova ordem das coisas já funcionando.

Daí que comprei o livro sem ler nem ver a capa, para ajudar a publicar. E fui no lançamento buscar meu exemplar numerado e conhecer pessoalmente o Alex, o Bia*, a Camila, o Inagaki. E mais várias blogueiras paulistas. Teria até conhecido a Mary_W se ela não tivesse ficado com preguiça de se abalar para a capital num sábado tão gelado.

Mas isto tudo é só superficial. Muito legal dar um dinheirinho no sinal para ajudar a publicar um livro (“Eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui escrevendo romances...”). Legalzinho ter meu nome no livro, ter um exemplar autografado e numerado. Mas e o livro? Vale alguma coisa? Dá para ler, pelo menos?

Como eu disse, eu tinha desistido da prosa de ficção já há uns anos (exceto por algumas recaídas de releitura, tipo “Lord of the Rings”). Mas eu tinha ajudado a publicar aquela coisa. Tinha ajudado a trazer ao mundo uma quantidade de páginas de papel de qualidade indeterminada. Precisava pelo menos saber se tinha feito apenas uma boa ação ou se o mundo realmente precisava de Mulher de um homem só.

O que segue é meio análise, meio resenha. Nada que eu tenha realmente competência para fazer. Mas só para resumir antes de começar, Mulher de um Homem Só é o melhor romance (novela? conto?) brasileiro deste e de muitos outros anos. É bom assim.

A voz de mulher e a mulher sem voz

Derrida está morto faz tempo – hoje qualquer criança já sabe, antes mesmo de aprender a ler, que uma equação de dois termos sempre implica alguma subordinação. Explícita (masculino-feminino, branco-negro) ou implícita (“ações de inclusão social” de deficientes, negros, gays – deixam implícita, quase apagada, a existência primeira e maior da exclusão – sem a exclusão não haveria o que incluir...)

O principal registro do livro, o tom mais óbvio e destacado, é a dicotomia eu-outra, falante-calada, voz-mudez. Júlia é sempre por Carla. Sua história inteira só nos chega através de sua maior inimiga, da esposa (quase) traída, da mulher enciumada e ressentida mas, principalmente, da vencedora. Sem tempo para filosofia barata ou babaquices politicamente corretas, Alex dá a voz ao establishment, dá ao historiador romano a liberdade de contar como quiser a história dos povos bárbaros vencidos, escreve a guerra do Iraque a partir do Kansas (ou mais propriamente, de New Orleans), deixa Ali Kamel mostrar como não existe racismo no Brasil.

E a voz de Carla, como toda aquelas vozes da história oficial, parece sempre sensata, sempre justificada. A loucura está lá longe, na outra, na pseudo-artista, na amante inconstante, na puta barata, na alcoólatra ocasional. A outra que existe para ser usada quando necessário, para cuidar da filha pequena ou aumentar as comissões de vendedora de Carla mas cujos desejos, opiniões, sonhos e paixões são sempre menores, errados, desimportantes, incômodos. A outra que não fala minha língua, então não deve ter voz.

Não passa uma página sem que Carla critique algum aspecto da vida de Júlia, desde seu modo de vestir até sua relação com a mãe, de sua incapacidade de manter um relacionamento às suas bebedeiras, de sua irresponsabilidade a sua futilidade.

We have met the enemy and he is us

O leitor pode simplesmente ler a história da esposa preocupada (mas lembrando sempre que, em psicanálise de boteco, preocupação é raiva, muita raiva) com a louca da amiga do marido. Como assim, “amiga do marido”?, perguntaria o outro leitor com um sorriso nos lábios. Desde quando maridos tem esta liberdade, a liberdade de amigas?

Então é preciso voltar e ler o livro ao contrário – quem diabos é esta Júlia? Da onde vem a força desta loucura, da onde parte o estranhamento? Por que a mulher livre precisa ser humilhada, pela narradora, pela sociedade, pela vida? Quanto ela tem que aguentar para se manter livre?

As mulheres de família sabem que o espelho não mente – a puta, a poeta, a artista, a viajante, a atriz, todas elas estão ali, no fundo, adormecidas ou mortas a facadas de realidade. Todas as curvas a esquerda que deviam ter sido à direita, todas as escolhas erradas, todos os homens que não as comeram ou para quem elas não deram, todas as sobremesas, todas as calorias, todos os porres que elas não tomaram, estes fantasmas da memória ainda olham do espelho e perguntam sempre, valeu à pena? Elas não precisam de uma desvairada que ameace todo dia mostrar que outro mundo é possível.

A última coisa que uma sociedade precisa é de uma minoria oprimida a esfregar na cara da raça/do sexo/da religião dominante a magnitude de seus crimes passados e presentes. A última coisa que Carla precisa de da amiga de infância do marido rondando seu casamento, esfregando na cara de Murilo todo o glamour do “poderia ter sido”, mostrando todo dia a diferença entre a artista incandescente e apaixonada que ele deixou passar para se casar com a vendedora/dentista/mãe.

O homem só

Mas claro que eu não estaria aqui falando de Mulher se fosse só isso. Eu talvez não tivesse nem terminado de ler se o livro se resumisse às lamúrias auto-piedosas da esposa exemplar. Há dezenas de outros níveis de leitura. Há por exemplo a terceira voz, muito fraca, o pobre Páris perdido nesta guerra de deusas.

Murilo, sempre estranhamente fraco, estranhamente ausente, quase sempre definido pelo negativo. Que não comeu Júlia (que Carla acredita que não comeu Júlia). Que perdeu a virgindade “em um puteiro de segunda categoria” (que contou esta historinha para boi dormir para Carla – quem naquele tempo, naquela classe social, naquela cidade, precisava ainda ir a um puteiro perder a virgindade? Ainda mais tendo Júlia ao lado louca para dar?). Que sempre fazia as vontade de todas as suas mulheres. Que seguia milimetricamente os passos do pai. Murilo que, como Páris no fim, talvez só quisesse um pouco de paz. Para ler a história de Murilo não bastam as entrelinhas e o espelho, é preciso ir buscar lá no título o homem que, arrastado à guerra de duas mulheres tão grandes, tão altas, tão terríveis, está só.

Há vários outros personagens. Alguns indiretos e sem voz, só narrados. Outros que até falam palavras que Carla conta de ouvir falar, em terceira ou quarta mão. Todos necessários, presentes, reais.

Mulher é um livro impressionante, a narrativa sempre inteira, o domínio da língua sempre presente mas nunca intrusivo, uma prosa que flui tão fácil que o leitor nem percebe o labirinto em que está se enredando até ser tarde demais. Inesperado, em meio ao eterno marasmo literário brasileiro. Um tapa na cara de cada editora que recusou-se a publicá-lo, uma prova da incompetência de cada assistente editorial que leu e não se arriscou a sugerir a seus chefes que ali estava um autor que merecia toda a atenção.

Um livro que me deu um prazer que quase só a poesia me dá. Que podia ser lido como um longo poema dramático, cada palavra pedindo a próxima. Ou como um épico moderno, cada parágrafo uma batalha, cada capítulo uma guerra. Tudo isto está lá, esperando para ser lido. Desliga a televisão, fecha o browser, sai do twitter, e vai lá ler. Agora.

* No lançamento de Mulher tinha outros livros sendo vendidos. Comprei os dois do Bia e o P2 da Olivia (que ainda não li). Então, para responder à pergunta do Bia na dedicatória e manter a tradição de trocadilhos imbecis inaugurada pelo Alex, achei Buceta muito melhor que Sexo Anal. Sem dúvida nenhuma. Sexo Anal tem sempre um que de excessivo, algo de desnecessário. Já Buceta é precisa, necessária, direta. A narração, digo.


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